quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"Covardia"

Caminhei até as portas de vidro aproximando-me da imagem da bela lady de vestido preto e óculos escuros que desfilava ao meu encontro. Parei, apertei o botão 'subir' e sondei meu reflexo por baixo das lentes de novo. De fato todos aqueles olhares indiscretos (e secretos) na rua tinham fundamento. Sorri satisfeita com um dos cantos dos lábios e logo minha visão periférica encontrou outro objeto de ânimo. Caminhava a passos largos, também em direção ao elevador, um belo naipe. Alto, ombros largos, robusto, roupas em tons escuros e sóbrios... bem meu tipo favorito.
Um brinde às lentes escuras! Pude investigá-lo tranquilamente. O homem estacou ao meu lado, pressionou o botão, que já estava aceso e comprimido (revirei os olhos), e olhou-me (eu o observava pelo reflexo. Tinha barba por fazer. Ah, barbas por fazer!) e pelo seu semblante gostou do que viu. Tive que controlar minhas bochechas que queriam demonstrar o lisonjeio. 
O elevador chegou e ele, após cortesmente segurar a porta para eu entrar primeiro (belas mãos, sem aliança), verificou, sem disfarçar muito, se seriam só nós dois no elevador. Desta vez não consegui refrear o semi sorriso.  
Fecharam-se as portas. Acionei meu andar, sétimo. Ele, sexto.
'Vamos lá, tente alguma coisa. Qualquer coisa. Tente que vais conseguir'
No sétimo andar havia um café com vista panorâmica. Ótimo. Podíamos ficar ali a princípio. Havia uma mesa que ficava num lugar mais reservado do café que seria ideal para que suas belas mãos passeassem pelas minhas coxas sem que ninguém percebesse.
Ele me olhou, tirei os óculos para que minha intenção ficasse claramente estampada.
'Vamos, querido, não se acanhe! Não vais levar nenhum fora, muito pelo contrário!'
Havia códigos para esse tipo de situação, não havia? Se ao menos eu tivesse realmente prestado atenção naquelas revistas femininas que minhas amigas me liam. Tinha algo com "olhar e sorrir", não tinha? Nunca precisei desses truques. Sempre foi tão natural! Por que ele não tentava nada? Sorri.
O homem sorriu-me de volta um tanto admirado. Abriu a boca e a fechou desencorajado.
'Qualquer bobagem que dizer vai funcionar, vamos! Não tenho uma aparência tão inibidora, vá!'
Ele sentiria gosto de tutti frutti em minha língua e um aroma doce de Paris em meu pescoço...
Sexto andar. As portas se abriram.
O belo naipe me olhou e- como eu detesto analfabetos de olhar!- eu lhe sorri mais uma vez arqueando uma das sobrancelhas num claro convite à tentativa. Ficou me olhando num sorriso de surpresa e expectativa.
-Oi.
-Oi - estiquei mais os lábios num belo sorriso.
As portas se fecharam.
'E...? Só vai me dizer "oi"?!'
O SIM já pululava na ponta de minha língua enquanto ele tentava formular a pergunta.
Sétimo andar. Abriram-se as portas novamente. Continuou me olhando inebriado sem nenhuma iniciativa. Finou-se minha paciência. Assim como se desliga um plug, desliguei meu sorriso num piscar de olhos.
-Covarde.
Coloquei os óculos e sai para mais um café solitário.






segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Perfume

-Está com perfume?
-Não, por quê?
Aproximou-se de mim novamente, como se fosse me cumprimentar com um beijo no rosto mais uma vez. Mas dessa vez senti teu hálito morno e a ponta gelada de seu nariz em meu pescoço aspirando meu aroma. Pegou-me de surpresa, tanto seu ato inesperado quanto a reação de meu corpo (que me fez ter que disfarçar o arquejo): sorte a dele de estarmos em público.
-Então é cheiro de Natalie.

sábado, 28 de julho de 2012

Amor ao ódio

Suas pupilas de repente concentravam fogo. Não se sentia mais uma mulher, sentia-se um animal. Tinha sede de sangue! Queria machucá-lo sem nenhum motivo racional. Havia motivos racionais. Mas ela não sabia, não queria justificar aquele desejo com a racionalidade.
Levantou-se. Suas lentes homicidas focaram na gaveta da cômoda. No canto dos lábios guardava um sorriso doce do pré prazer do que estava para realizar. Retirou a arma branca da gaveta com as mãozinhas geladas e seu sorriso se abriu até esticar os lábios ao máximo, enquanto os longos cílios encostavam nas sobrancelhas com o arregalar daqueles olhões felizes e vorazes. Ela quase não se continha. A adrenalina deixara seu corpo elétrico, queria agir logo.
Súbito a expressão de euforia substitui-se pela de mais pura concentração (sem nunca deixar o brilho de entusiasmo dos olhos): ela deveria ir sorrateiramente surpreender sua caça. Saiu do quarto. O corredor era bastante estreito, pequeno, obscuro. Se alguém pudesse vê-la naquele instante enxergaria escassamente apenas o branco de sua regata e o reluzir de seus olhos inumanos. Viu a luz amarela se projetar pelas frestas da porta do banheiro. Os sons rasos que ele emitia eram combustível para a ira que a impelia. Sentiu-se forte, muito forte. Apertava com tanta força os dentes que se houvesse carne entre eles seria mutilada. Enquanto deu os poucos passos, surdos como de felinos, que faltavam para se por de frente a porta que o guardava, o cano da arma roçou lascivamente em sua coxa nua.
Com um único chute a velha porta de tranca enferrujada se escancarou e bateu estrondosamente na parede azulejada do banheiro antigo, branco encardido. Fora mais fácil do que imaginara.
Dois segundos. Foi o tempo infinito em que se olharam.
Ele teve a certeza, antes de sentir a dor excruciante que marcaria o início de seu fim, de que ela era a criatura mais linda e assustadora que já tinha visto em toda a sua vida. Um demônio vestido de anjo, ou vice-versa.
Ela estava ébria de um ódio lindo! Tão puro e genuíno que ela sentia como amor.
O som do único tiro que disparou naquela manhã mórbida ecoou nos pátios de estacionamento da vizinhança insensível, fazendo pássaros alçarem voo. Ela não queria que a bala o matasse.
Ele pendeu de dor com um grito grave quando o projétil cravou em sua rótula (ela não ouvia, estava surda de êxtase) e caiu batendo com a cabeça na janela de vidro depois que a bela perniciosa ainda lhe esbofeteou o maxilar com o revólver. Estilhaços de vidro e chuviscos de sangue enfeitaram os ladrilhos do piso. Pegou-o pelos cabelos e o arrastou até a banheira batendo-lhe brutalmente a fronte na borda. Mais carmim para a embriagar o olfato. Jogou-o de costas ao chão, respirava grotescamente expirando a cada segundo, e o montou licenciosamente. Surrava-lhe a cabeça com a arma com um vigor surreal. Era perfeito aquele momento! Nunca fora tão feliz, tão plena! Nada e tudo fazia sentido! Pela primeira vez ela sentia o amor jorrar-lhe da alma.

sábado, 14 de julho de 2012

Aflição

E lá estava a bela moça sentada naquele estofado que não era de couro, naquele carro popular sujo (certamente sem revisões que atestariam seu mau funcionamento), com aquela música horrível, decadente, de baixo nível. As placas de neon iluminadas à beira da estrada sinalizavam o destino barato ao qual ela se encaminhava. Ela podia sentir com extrema nitidez aquela vida (suja, de subúrbio, obscena) como um ser orgânico a lhe perscrutar, a lhe farejar com o focinho molhado de esgoto. E esse ser orgânico a queria. Queria aderir à sua massa fétida sua carne limpa, fresca, de primeira. O que eu estou fazendo aqui?! Perguntou-se tomada por um desespero mudo. Parecia que nunca iria conseguir voltar de onde nunca deveria ter saído. Sua garganta começou a arder em brasa. Os olhos armazenavam inícios de lágrimas rente aos longos cílios inferiores. Nenhum daqueles estranhos (inclusive a semiestranha que a conduzira até ali) podiam enxergar no escuro do automóvel os pontinhos brilhantes e salgados que já quase escorriam pela sua face de boneca.