sábado, 28 de julho de 2012

Amor ao ódio

Suas pupilas de repente concentravam fogo. Não se sentia mais uma mulher, sentia-se um animal. Tinha sede de sangue! Queria machucá-lo sem nenhum motivo racional. Havia motivos racionais. Mas ela não sabia, não queria justificar aquele desejo com a racionalidade.
Levantou-se. Suas lentes homicidas focaram na gaveta da cômoda. No canto dos lábios guardava um sorriso doce do pré prazer do que estava para realizar. Retirou a arma branca da gaveta com as mãozinhas geladas e seu sorriso se abriu até esticar os lábios ao máximo, enquanto os longos cílios encostavam nas sobrancelhas com o arregalar daqueles olhões felizes e vorazes. Ela quase não se continha. A adrenalina deixara seu corpo elétrico, queria agir logo.
Súbito a expressão de euforia substitui-se pela de mais pura concentração (sem nunca deixar o brilho de entusiasmo dos olhos): ela deveria ir sorrateiramente surpreender sua caça. Saiu do quarto. O corredor era bastante estreito, pequeno, obscuro. Se alguém pudesse vê-la naquele instante enxergaria escassamente apenas o branco de sua regata e o reluzir de seus olhos inumanos. Viu a luz amarela se projetar pelas frestas da porta do banheiro. Os sons rasos que ele emitia eram combustível para a ira que a impelia. Sentiu-se forte, muito forte. Apertava com tanta força os dentes que se houvesse carne entre eles seria mutilada. Enquanto deu os poucos passos, surdos como de felinos, que faltavam para se por de frente a porta que o guardava, o cano da arma roçou lascivamente em sua coxa nua.
Com um único chute a velha porta de tranca enferrujada se escancarou e bateu estrondosamente na parede azulejada do banheiro antigo, branco encardido. Fora mais fácil do que imaginara.
Dois segundos. Foi o tempo infinito em que se olharam.
Ele teve a certeza, antes de sentir a dor excruciante que marcaria o início de seu fim, de que ela era a criatura mais linda e assustadora que já tinha visto em toda a sua vida. Um demônio vestido de anjo, ou vice-versa.
Ela estava ébria de um ódio lindo! Tão puro e genuíno que ela sentia como amor.
O som do único tiro que disparou naquela manhã mórbida ecoou nos pátios de estacionamento da vizinhança insensível, fazendo pássaros alçarem voo. Ela não queria que a bala o matasse.
Ele pendeu de dor com um grito grave quando o projétil cravou em sua rótula (ela não ouvia, estava surda de êxtase) e caiu batendo com a cabeça na janela de vidro depois que a bela perniciosa ainda lhe esbofeteou o maxilar com o revólver. Estilhaços de vidro e chuviscos de sangue enfeitaram os ladrilhos do piso. Pegou-o pelos cabelos e o arrastou até a banheira batendo-lhe brutalmente a fronte na borda. Mais carmim para a embriagar o olfato. Jogou-o de costas ao chão, respirava grotescamente expirando a cada segundo, e o montou licenciosamente. Surrava-lhe a cabeça com a arma com um vigor surreal. Era perfeito aquele momento! Nunca fora tão feliz, tão plena! Nada e tudo fazia sentido! Pela primeira vez ela sentia o amor jorrar-lhe da alma.

sábado, 14 de julho de 2012

Aflição

E lá estava a bela moça sentada naquele estofado que não era de couro, naquele carro popular sujo (certamente sem revisões que atestariam seu mau funcionamento), com aquela música horrível, decadente, de baixo nível. As placas de neon iluminadas à beira da estrada sinalizavam o destino barato ao qual ela se encaminhava. Ela podia sentir com extrema nitidez aquela vida (suja, de subúrbio, obscena) como um ser orgânico a lhe perscrutar, a lhe farejar com o focinho molhado de esgoto. E esse ser orgânico a queria. Queria aderir à sua massa fétida sua carne limpa, fresca, de primeira. O que eu estou fazendo aqui?! Perguntou-se tomada por um desespero mudo. Parecia que nunca iria conseguir voltar de onde nunca deveria ter saído. Sua garganta começou a arder em brasa. Os olhos armazenavam inícios de lágrimas rente aos longos cílios inferiores. Nenhum daqueles estranhos (inclusive a semiestranha que a conduzira até ali) podiam enxergar no escuro do automóvel os pontinhos brilhantes e salgados que já quase escorriam pela sua face de boneca.