sábado, 27 de abril de 2013

Bruna

Era como se do nada eu voltasse abruptamente à uma realidade antes submersa - uma realidade fortemente poluída pelo cheiro de gelo seco e pelas acelerações da batida techno. Sentia como se tivesse me mantido no piloto automático até chegar ali. Só agora, diante do ambiente contrastante, dava-me conta de minha presença naquele lugar. Enquanto tentava me lembrar do porquê de ter entrado naquele carro com aquelas pessoas - tarefa difícil com a absurda sonoplastia da casa -, observava aqueles seres pulando em meio à escuridão e às luzes em neon. Três ou quatro fisionomias que julguei serem masculinas, olharam de volta com interesse escancarado. Eu queria aquilo?
-Caipira?! - gritou-me uma moça em meu ouvido.
Bruna. Claro. Havia aceitado seu convite. Que ponto havia chegado minha solidão?
-Não, obrigada! Já bebi demais! - gritei-lhe de volta, experimentando a sensação de usar toda a capacidade das cordas vocais sem obter quase nenhum resultado.
Ela bebeu um largo gole da bebida, lambeu os lábios.
-Toma, vai! Tá bem docinha!
Forjei um sorriso e peguei o copo de sua mão. As outras três ou quatro bebidas que havia sorvido também eram doces e nem por isso meu estado de espírito mudara.
Uns outros dois amigos de Bruna conversavam com ela, estavam animados. Todo mundo ali parecia animado, mas por alguma razão eu sentia aquela alegria oca. Talvez eu precisasse entornar mais aquele copo e no mínimo mais outros três. Bebi um gole generoso.
-E você? Seria fatos delínio ceza? - gritou-me sorrindo um dos amigos de Bruna.
-Oi?!
-Achei você menina chizantequi! Pressunaceza!
-O que?! Desculpe, não entendi nada do que me disse!! - gritei de volta sentindo minha garganta vibrar ao máximo e mesmo assim sem nem conseguir ouvir minha voz direito. Podia não ter entendido suas palavras, mas seu olhar era óbvio.
Chegou perto de mim ao ponto de eu sentir seu perfume e o hálito de cerveja. Gritou-me diretamente no ouvido: "Eu disse que você é a mulher mais interessante daqui! Que te achei uma princesa!"
-Ah.
Nos últimos dias, para não dizer meses (para não dizer sempre), havia fugido daquilo. De obter corpos e mais corpos inabitados de pessoas. A sensação inexplicável de querer companhia quando estava sozinha, e querer ficar sozinha depois que encontrava a companhia. Como alguém que descobre estar cercado procurei inconscientemente a saída.
O rapaz ficou me olhando sorrindo. Como se, ao dizer as 'palavras mágicas', eu devesse esboçar alguma reação esperada.
A saída ficava à esquerda atrás dele, descendo as escadas. Perguntei-me seriamente se seria muito patético se eu fosse embora daquele lugar sem me despedir de ninguém e com aquele copo na mão.
-Vamos ao banheiro! - Bruna me puxou.
No caminho desci a bebida goela abaixo. Uma mão apertou uma de minhas nádegas, olhei para trás: impossível saber quem.
-Nossa, bem melhor aqui! - disse Bruna, finalmente podia ouvir sua voz com a intensa poluição sonora da pista abafada pela porta - Poxa! Não acredito que você bebeu tudo!
Tirou o copo vazio de minha mão e pingou as últimas gotas em sua boca.
-Pensei que fosse para mim.
-E era, mas podia ter dividido, né safada? - deu um tapa em minha bunda. Fora ela quem a agarrara a pouco?
-Precisava mais que você, acredite.
-Tenho uma coisa aqui que tu vais gostar! - Bruna deixou o copo na bancada e abriu a bolsinha tiracolo preta que levava procurando algo com os dedos, sua mão nem caberia inteira de tão pequena que era a bolsa -Tcharãn!
Mostrou-me um tubinho grosso, fosco e preto, parecia um charuto pela metade.
-Que isso? É para fumar?
Bruna explodiu numa gargalhada jogando a cabeça para trás.
-Não, retardada! Isso é um batom! Está chapada?
-Não.
 Olhou-me agora em dúvida. A pergunta fora retórica.
-Passe! É vermelho! Tu vais ficar linda! - deu-me o batom.
-E você?
-Esse dourado já está bom, não fico tão bem de vermelho.
Olhei-me no amplo espelho. De fato o batom viria a calhar, não havia um pingo de cor em meu rosto, exceto o negro das bolitas dos olhos e o preto dos longos cílios e das sobrancelhas. Pálida como um fantasma. Deslizei a barra vermelha nos lábios, tinha um cheiro gostoso de licor de morango.
-Deveria ser crime uma guria com essa tua boca não sair de batom - disse ela, olhando hipnotizada para o vivo da cor.
Eu ri.
-Acho que a chapada aqui é outra.
-Vamos! - tirou o batom de minha mão, enquanto eu espalhava a cor comprimindo um lábio no outro, e o enfiou de volta na bolsinha.
Pegou-me pela mão e foi me conduzindo, fui assaltada pelo barulho ensurdecedor quando voltamos ao antro. Bruna costurava entre os transeuntes com tamanha habilidade que fiquei admirada de não batermos em ninguém.
-Teus amigos estão para lá! - parei-a, estávamos indo para o lado oposto.
-Eu sei! - gritou-me de volta - Você não gostou deles!
Deixei-me levar por ela mais uma vez. Paramos numa sala com paredes e bancos todos em preto e branco. As luzes ali se alternavam entre branca e vermelha. Todos ali dançavam tão alucinados quanto os da pista principal. Um casal se pegava com tal gosto em um dos bancos que pude sentir as ondas de calor que emanavam, virei o rosto constrangida. Bruna ainda segurava minha mão, olhei-a, ela me fitava com vivo interesse.
-Dance! - gritou-me ela, mas ainda segurava firme minha mão, limitando qualquer movimento meu.
-Não gosto dessa música!
-Dance, por favor! Quero vê-la dançar!
-Não sei dançar essa coisa!
Pegou meu rosto entre as suas mãos e me gritou no ouvido: "é que você tem que sentir o ritmo primeiro!".
Suas mãos desceram pelo meu pescoço, pararam nos ombros. Olhava-me como nunca havia me olhado. Parecia que era a primeira vez que me enxergara. Ou a primeira vez em que me deixou vê-la me enxergar.  Virou-me de costas, deslizou as mãos por cima de minha blusa delineando meu formato, agarrou minha cintura e grudou-me nela.
-Está me sentindo?! - gritou-me no ouvido, pela primeira vez senti o calor de sua voz.
Fiz que sim com a cabeça, não foi necessário gritar. Ela sabia.
Suas mãos, em minha barriga, desceram até as cavidades ósseas da bacia. Fixaram-se ali com ímpeto. Dois dedos de Bruna embaixo do cós de meu jeans, à pouquíssimos centímetros de me fazer arfar. Estava completamente à deriva dela.
-Feche os olhos!
Obedeci. Bruna me guiava no mesmo ritmo de seus quadris. Um embalo tão acalentador que a música me tornou indiferente. Meu corpo todo seguia os movimentos do de Bruna. Uma de suas mãos deixou meu quadril e subiu por debaixo de minha blusa, senti seu dedo entre meus seios, no fecho do sutiã. Ofeguei. Sua mão desceu novamente com os dedos em direção a parte mais quente de meu corpo. Voltou à ponta pélvica de meu quadril, foi afrouxando aos poucos. As duas mãos subiram pelos contornos de meu abdômen, passaram pelos seios (apertando-os levemente) até as axilas, fez-me levantar os braços. E não era mais Bruna que me balançava.
-Agora dance! - gritou-me e se soltou de mim.
Eu dançava. Dançava sem nem saber se aquilo que fazia era dança. Pulava e gingava os quadris com os braços levantados, o nó que prendia meus cabelos se desfez com o balançar da cabeça, minha barriga aparecia ocasionalmente pelos movimentos alucinados que eu fazia e que levantavam minha blusa.
Fiquei daquela maneira por um tempo que sou incapaz de dizer. Poderia ter sido por segundos ou por horas.
Subitamente alguém se encaixou em mim pelas costas mais uma vez. Não era Bruna, sentia nitidamente um membro rijo a me comprimir, suas mãos eram mais pesadas em minha cintura e o cheiro que exalava era amadeirado, não o cítrico doce de minha amiga. Abri os olhos inundada por uma decepção inesperada. Um tapa na cara daquela realidade suja que me tirou de meu doce transe como um solavanco.
Onde estava ela? Desvencilhei-me levemente enojada do rapaz que agora lambia meu pescoço. Quando me esquivei por completo de sua presença ele me gritou algo que não entendi, mas que me soou claramente como uma ofensa.
Onde estava Bruna?
Bruna sempre me fora uma das poucas companhias femininas aturáveis de meu círculo social, tanto que na maioria das vezes em que me ligava, eu ia para onde ela escolhia sem nem pestanejar. Ela suportava meu mal-humor intransigente, minha capacidade de desistir das companhias extras, meu pessimismo com relação à felicidade alheia. Bruna aceitava o meu pior, sem nem ter garantias do melhor.
Bruna, onde se meteu?
O ar tornara-se denso, fazia força para enfiá-los nos pulmões. A música acelerada opunha-se à uma visão em câmera lenta de tudo e de todos. Sentia meu corpo extremamente quente em contraste com as extremidades como mãos e pés gelando. As luzes se misturaram com o som e de repente eram a mesma coisa: um peso colorido e gritante que me esmagava por todos os lados.
Bruna...?
Senti um braço fino suportar parte de meu peso envolto em minha cintura. Cítrico doce. Bruna.

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